Carta a Deus
Querido Deus,
tive um bom dia hoje.
E espero que Tu também.
Que tenhas visto mais atos de bondade,
mais resquícios de humanidade
do que de vileza.
Tive o prazer da prosa
com alguém por quem tenho tanto carinho.
Falei-lhe sobre o luto das pessoas e das coisas,
e ela chorou.
Mas depois rimos juntos,
e fizemos amizade com um bêbado tomando vinho.
A beleza de Vancouver me abraçou —
os pinheiros, em camaradagem,
fizeram sombra sobre mim.
Fez calor, mas não tanto.
Exerci, mais uma vez, a qualidade da poesia.
Obrigado, Deus, por me concederes
este dom antigo que às vezes retorna,
como o sol depois da chuva
e se manifesta nas sete cores do arco-íris.
Amei meus pais.
Pensei muito no meu irmão.
Recordei o sonho etéreo do paraíso,
onde Teu rosto e o dele pareciam um só.
Refleti sobre os pecados capitais,
os interpretei —
e, em penitência ou culpa, os evitei.
E, ainda mais, dei-me o direito,
sim, o direito
de comprar um pão mais caro.
Conversei com um senhor querido.
Falamos sobre quem somos,
de onde viemos
e para onde vamos.
E eu, tão envergonhado da minha oratória,
proseei com a leveza de quem domina muitas línguas.
Dizíamos um ao outro
que momentos assim aquecem o coração.
Deus, pensei muito na Sara.
Num primeiro momento,
veio a angústia.
Depois, veio a serenidade.
Veio a beleza, a gratidão, a leveza
de ter amado e sido amado
por uma pessoa tão linda
em todas as suas camadas mais metafísicas.
Senti saudades.
E me perguntei:
é pra ter?
Deus, é pra sentir tanta saudade?
No meu dia mais feliz, é pra querê-la ainda?
E no mais triste, também?
Prometi a ela, em pensamento,
que escreveria um poema por dia
se viesse falar comigo —
mas que não me mencionasse,
que falasse só dela, apenas dela.
Reconheci minha condição humana
e prometi que, se falhasse nessa promessa,
a cumpriria no dia seguinte.
Depois, voltei atrás.
Disse a mim mesmo que ela não precisa voltar a me amar —
só que venha.
Que venha me contar sobre seu dia,
sobre seus muitos outros dias
que eu já não compartilho.
Quero só saber de tudo
que passa dentro daquela mente tão bonita —
teimosa, sim, às vezes — mas quem não é?
Se eu também sou, então os outros também podem ser.
Revisitei muitos dos meus erros,
mas também me dei o direito
de rever um — só um — acerto.
Como se a mim coubesse, também,
o direito de ser humano.
Deus, que ela tenha partilhado comigo
a beleza do céu lambendo o dorso da montanha
em tons de laranja —
e que Tu tenhas renovado
minha esperança
em Ti e na Tua humanidade.
E, por fim, me perguntei:
se tirasses minha vida agora,
eu morreria feliz?
A verdade, Deus,
é que não sei.
Mas tenho amanhã
para tentar outra vez.