Partilho o pão da vida nessa maldita primavera.
Tudo vive, ao meu redor, tudo vive.
Na janela dos outros há flores
e aqui, na umidade das frestas da alma.
Por que, então, eu vivo tão pouco?
Uma xícara bonita está caída sobre a mesa.
Ela é linda, é vermelha por dentro, borda as coisas da China.
Essa vermelhidão me ofende,
ela sangra porcelana.
É presente velho, será?
O ontem é muito velho?
É relíquia?
O que definem as relíquias?
Derramo o café, mancho tudo mesmo.
O café escuro não seca.
É mancha ruim de limpar.
Tira das coisas sua tonalidade mais natural.
É o que eu faço de melhor!
Eu aplico verniz nas falhas do cotidiano.
Eu, poeta do desperdício,
converto os comedores em glutões,
os fiéis em fanáticos,
os amantes em pedintes.
E eu, que não parece, mas comporto-me com ódio dos arredores,
continuo me comportando tão bem,
sigo comendo direitinho,
de boca fechada,
como manda o manual dos fingidores.
Sou experimento de mim mesmo
e vocês todos são cobaias do que restou da minha vontade de existir.
E à noite, deito.
Vou dormir tranquilo, tranquilo.
Peço perdão a Deus com a mesma voz que peço um favor teu
e nem penso se Ele ouve, talvez.
Amanhã, ah! Amanhã eu acordo e peco outra vez.