Aviso de gatilho: Este texto contém descrições explícitas de suicídio, sofrimento emocional intenso e ideação suicida. A leitura pode ser perturbadora para algumas pessoas.
Se você estiver passando por momentos difíceis ou pensando em se machucar, procure ajuda. No Brasil, você pode ligar para o CVV pelo número 188 ou acessar www.cvv.org.br. No Canadá, ligue para 988 (Suicide Crisis Helpline). Você não está sozinho, você não está sozinha.
Na banheira, meu corpo boia.
Espero, com a paciência dos afogados,
que a tragédia se digne a acontecer.
As garrafas de comprimidos,
todas contadas, todas alinhadas,
um exercício de alquimia.
Na alquimia da depressão,
fiz o antídoto do sofrimento.
Ai, quanta sabedoria inútil.
Preciso, imediatamente, de socorro.
Deus, a água está tão fria. Por quê?
Abri a torneira no fervor mais escaldante.
Seria verdade que já estou morto
e isto é só uma formalidade burocrática?
Mas para quem pedir socorro?
Aos pais? O crime mais hediondo.
Ao irmão? É corromper o que é puro.
À ela? Foi ela quem me trouxe aqui,
talvez ela mesma me dê os comprimidos,
me force-os goela abaixo,
me afogue, me eletrocute,
compre o caixão, feche-o com setenta mil cadeados
e o atire, com duzentas toneladas,
na fossa das Marianas.
Aos amigos? Não quero traumatizá-los.
Ao desemprego? É materialismo do inexistente.
Nada dá, Deus. Nada dá.
A Bíblia caiu n’água.
As letras nadam.
Não posso ler teus ensinamentos.
Melhor me apressar.
E vão-se uma, duas, três garrafas.
Meu corpo se desmancha nas lágrimas da Via Láctea.
Num suspiro, vejo-me sete anos depois.
Nada mudou:
a miséria ainda me rói as beiradas,
as lágrimas ainda caem,
os soluços e gritos e berros
são engolidos pelo vácuo
da minha existência burra, incompetente.
Mas é minha.
Então vomito tudo e consagro
minha patética incompetência
mais uma vez.
– “Louise Vernet, a esposa do artista, em seu leito de morte”, cerca de 1846. Pintado por Paul Hippolyte Delaroche.