Plano Celestial
Na penumbra, a estrada a frente afunila-me à um horizonte.
Pés descalços, paralelepipedos pungentes,
água da chuva nas cavaletas, gramado crescendo nas calçadas
e um horizonte a ser seguido, sem uma luz sequer.
Dentro de mim cresce uma necessidade,
um desejo tão amolante que paira sobre mim
e me faz caminhar e caminhar e caminhar:
Sei que existe um fim à estrada,
sei que eu quero chegar lá.
À minha esquerda, Giovanni caminha abraçado a sua amada.
À minha direita, vultos acotovelam-se,
usam roupas esfarrapadas, fedem à morte, mas seguem caminhando.
E de repente, num suspiro que rasga as vestes do tempo,
o que antes era um horizonte deformado agora toma formas infinitas
e minha vista é inundada por árvores magníficas que irradiam a paisagem com ímpar excelência.
Lá na frente, um arco afunila as milhares de almas que caminharam comigo,
agora entendo que todas caminham à um destino único,
há um portal entre a esfumaçada planície e um plano celestial.
Um passo adentro e a sujeira do meu corpo se esvainece
(as impurezas da alma ficam armazenadas numa caixinha sem fundo).
A penumbra recolhe-se de vergonha diante deste dia tão cristalino;
as árvores preenchem os mil bosques que transbordam o meu olhar;
riachos correm para cima e para baixo; montanhas e escadarias, recheadas de pessoas.
Subo quinze degraus e lá minhas tias Ana e Tônia conversam sem parar,
vejo o tio Alexandre passando e distribuindo chocolates
com um sorriso próspero, esperançoso, como um sopro de vida no ar.
Minha mãe vem ao meu encontro, atenciosa mãe que me disse adeus não tarde demais,
e agora me recebe novamente, calorosamente,
como só os braços aquecidos de mãe podem ser.
Ao meu redor, são milhares de pessoas, são milhões de corações.
A cada instante passam corpos pútridos pelo arco celestial,
todos decantam até sobrar apenas a essência mais humana,
incorrompível pelas invirtudes do plano terrestre.
Eles vão ao encontro a suas famílias, aos seus filhos
;
vão receber chocolate do meu tio;
vão ver sorrisos e serem felizes.
Na entrada, meu tio Geraldo entra também,
mãos nas costas, olhar no chão,
olhar de quem tanto sofreu em vida,
incapaz de desprender-se das correntes
que aqui não mais existem.
Mais adiante, o horizonte inunda-se numa relva amarelada.
Lá no meio, o plantador de girassóis cuida da sua minuciosa floresta de asteráceas,
de chapéu na cabeça e aparência eternamente jovial.
Lá, ele transforma a paisagem e é feliz.
Feliz como eu também sou, como eu nunca fui
.
Até que de repente cresce um tormento em meu peito,
lembro que há um vazio aqui dentro
e procuro desesperadamente pelo meu querido irmão.
Dou voltas em mim mesmo, desesperado
e afogo-me no desespero dos condenados.
Eu grito, corro, sinto lágrimas caírem,
Eu choro, berro, bato, caio, morro,
empurro todas aquelas almas puras que me impedem de voltar
pelo caminho escuro de onde vim,
para buscá-lo, encontrá-lo e trazê-lo para cá
e finalmente vê-lo caminhar, falar tudo que nunca pôde,
ver seu sorriso mais outras milhões de vezes,
ver sua face tão serena brilhar como um farol na minha vida.
É quando a verdade por fim me toca, e assim as lágrimas param
e meu desespero é sobreposto por um sentimento eterno de gratidão:
Quando eu olho, sinto e vibro neste plano celestial,
Eu olho para meu irmão.
– Foto: Meu querido irmão.